Entrevista Carlos Siqueira: “A remodelação ministerial de Lula? É assim que as democracias morrem”

20/09/2023 (Atualizado em 25/09/2023 | 09:30)

Presidente do PSB, partido do vice-presidente Alckmin, critica a entrada no governo brasileiro de aliados de Bolsonaro. “Num país normal, quem escolhe quem está na oposição ou no governo é o eleitor, não são os políticos que vão mudando de lado”.


Na semana passada, o Governo Lula anunciou uma remodelação ministerial cujo destaque foi a inclusão de dois partidos, PP e Republicanos, que apoiaram Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 e 2022 e serviram de suporte legislativo no Congresso Nacional ao ex-presidente do Brasil. A aliança, considerada politicamente contra natura e o exemplo definitivo do oportunismo de Brasília, dividiu opiniões.


Nalguns meios, Lula da Silva foi elogiado pela capacidade negocial e pela ampliação da sua base parlamentar mas, noutros, criticado por ceder a tudo, como nos seus primeiros governos, de 2003 a 2010, pelo exercício do poder.


Entre os críticos conta-se Carlos Siqueira, o presidente do PSB, partido de centro-esquerda, como o PT de Lula, que está na génese da candidatura vitoriosa do ex-sindicalista e de Geraldo Alckmin à presidência e à vice-presidência, respetivamente, nas eleições do ano passado.


Para Siqueira, “esses partidos apoiaram Bolsonaro mesmo sabendo o desastre que ele era e os riscos que o país corria, até do ponto de vista democrático, com ele no poder, pois bem, agora estão no governo”.


O líder do PSB, que viu dois dos três ministros do seu partido perderem espaço na remodelação, recusa, porém, falar em “traição”. “Não me senti traído, não me deixou mágoa, não trabalho com mágoa, simplesmente foi tudo feito de uma forma inadequada”.


E conclui: “Sair do governo? Não, estamos nele por convicção desde antes das eleições, não por conveniência mas somos críticos do deformado processo político do Brasil”.


Concorda com a remodelação ministerial de Lula da Silva que incluiu dois partidos pro-Bolsonaro no governo?


Não concordo, essa é a confirmação do aprofundamento da deformação do nosso sistema político e, em última análise, da nossa democracia. Num país normal, quem escolhe quem está na oposição ou no governo é o eleitor, não são os políticos que vão mudando de lado consoante o seu interesse. Imagine que o PSD vencia a eleição em Portugal e os ministros eram do PS? Salvo um momento extraordinário de união nacional ou de guerra, isso parece inconcebível, não parece? E parece inconcebível porque não faz sentido o povo escolher em eleições quem é governo e quem é oposição e depois delas ser tudo subvertido.


A presença do PP e do Republicanos, partidos conservadores de direita, pode prejudicar a atuação política do governo?


Esses partidos apoiaram Bolsonaro na primeira eleição e na segunda eleição, mesmo sabendo o desastre que ele era e os riscos que o país corria, até do ponto de vista democrático, com ele no poder, esforçaram-se mais ainda pela eleição dele. E agora estão no governo. Um dos partidos tem até uma igreja protestante por trás, que se envolve e lança mesmo candidatos ultraconservadores [ndr: o Republicanos é considerado o braço político da IURD] e o outro é liderado pelo presidente da Câmara dos Deputados [ndr: Arthur Lira, um dos barões do PP] que se esforçou intensamente pela reeleição de Bolsonaro. Esses e outros partidos não representam nada, são meramente partidos eleitorais que visam estar no governo, seja ele qual for. Faz sentido termos partidos, como os citados e outros, que estiveram com Lula, depois com Dilma Rousseff, depois apoiaram o impeachment dela e estiveram com Michel Temer, depois com Bolsonaro e agora entram no governo Lula? É a despolitização da política e a desvalorização dos partidos num contexto de crise institucional. E é assim que as democracias morrem.


No fundo, o sistema político brasileiro impede a concretização de projetos de desenvolvimento, de programas de longo prazo?


Sim! Num país com um potencial incrível, de ouro, de minérios, de natureza, há uma falta de projeto de desenvolvimento estratégico no país: repare que a esquerda, na qual me incluo, antes de chegar agora ao poder, esteve 13 anos, quase 14, no governo [ndr: de 2003 a 2016] e não aprovou uma reforma estrutural, fosse a reforma tributária, para que toda a gente pagasse justamente de acordo com o que recebe, a política, a administrativa ou a agrária. Fez coisas importantes, claro, dignificou o salário mínimo, instituiu o Bolsa Família, tão necessário que até o último governo, de extrema-direita, o adotou mas não houve reformas estruturais.


Não concorda com os defensores da remodelação de que, com a entrada desses dois partidos e uma maioria mais ampla no Congresso, essas reformas têm mais possibilidades de serem aprovadas?


Não, porque esses partidos não fazem reformas, eles só olham para o Diário Oficial da União [ndr: veículo, equivalente ao Diário da República, onde são comunicadas as nomeações para o governo]. Mais: em julho, antes desta remodelação, o governo teve cerca de 400 votos a apoiar a emenda à Constituição que permitiu a reforma tributária, quando precisaria só de 308 votos, porquê então isto?


Como aliado de primeira hora do governo e presidente do partido do vice-presidente, Geraldo Alckmin, sentiu-se traído por Lula com esta remodelação?


Não me senti traído, não me deixou mágoa, não trabalho com mágoa, simplesmente foi tudo feito de uma forma inadequada. O Geraldo Alckmin, que além de vice é ministro, e o Márcio França [ndr: outro ministro do PSB, que mudou para pasta menor na remodelação] foram “fritados”, como dizemos na gíria política do Brasil, por meses na imprensa, todos os dias saíam notícias a dizer que eles perderiam o cargo ou perderiam poder. Era muito mais simples, muito mais objetivo, falar connosco, negociar, assim, temos um processo que não é transparente, um processo do qual eu, que faço parte do governo desde sempre, não fui informado.


Alckmin perdeu parte do ministério que lhe cabia e França deixou um ministério importante para integrar um outro recém-criado…


O Alckmin, ministro do Comércio, Indústria e Serviços perdeu essa parte dos Serviços para a nova pasta da Micro e Pequena Empresa que será ocupada pelo França, que saiu de uma pasta importante de infraestrutura, a dos Portos e Aeroportos, para essa que ainda não se sabe como vai ser. Nós contrapropusemos uma pasta chamada Empreendedorismo, Corporativismo e Economia Criativa, mais ampla do que a da Micro e Pequena Empresa, mas vamos ver se isso ainda vai acontecer.


É cedo para falar nas presidenciais de 2026 até porque Lula disse em campanha que não se recandidataria mas já deu sinais de que pode voltar atrás. Entretanto, o PSB tem dois nomes considerados presidenciáveis, desde logo Alckmin, mas também o ministro da Justiça Flávio Dino. Como o partido prepara essa eleição?


O PSB tem, acima de tudo, um projeto nacional de desenvolvimento mas tem também, sim, dois nomes excecionais para eventual candidatura presidencial em 2026. No entanto, é cedo para falar disso, a nossa democracia só saiu, para já, das urgências do hospital, foi para o quarto mas não tem ainda previsão de alta, se continuarmos a colocar os interesses eleitorais acima de tudo, arriscamo-nos a eleger outra vez algum tosco inexpressivo, como o Bolsonaro. Ele não caiu do céu, ou, no caso, ele não subiu do inferno, ele é fruto de erros de décadas do nosso sistema político.


O PSB está ainda de corpo e alma no governo?


Nós no PSB não estamos no governo por conveniência, estamos por convicção política e convergência ideológica. Nós corremos riscos na eleição: umas correntes do partido defendiam candidatura presidencial própria, outras defendiam apoio a Ciro Gomes, do PDT, e outra, a minha, defendia que a única pessoa capaz de derrotar Bolsonaro era o Lula. Apoiámos o governo antes da eleição, apoiamos agora e vamos apoiar até ao final, não precisam preocupar-se, agora isso não me impede de ter uma visão crítica, não do governo, que acho que está dando certo, mas do deformado processo político democrático do Brasil.


* Entrevista publicada no site ‘Diário de Notícias’, de Portugal, em 19.9.2023


Fonte: Ascom PSB Nacional